quinta-feira, 13 de novembro de 2008

"Gato, gato, gato, gato" - Que saudades da Lúcia

Outro dia me recordei de uma personagem da minha adolescência na megalópole Sãomateuense com ternura. Eu finalmente a compreendi.
Não era fácil encontrar empregada doméstica em São Mateus, mas a mãe sempre acreditou no potencial das pessoas e dava chance para as mais interessantes moçoilas. De longe a mais caricaturística delas foi a Lúcia: uma moça de vinte e poucos anos, que se aventurara fora do pequeno sítio onde nasceu e cresceu pela primeira vez na vida, lá em casa, na "cidade grande". Ela descendia de Ucranianos e fora criada em uma colônia muito tradicional. Ela era muito tímida e retraída. Falava muito pouco e quando falava era uma mistura da estrutura gramatical do Ucraniano, sotaque caipira e um idioma que lembrava o Português. Quando precisava saber o que fazer para o almoço dizia: "Cozinhá arôs, feixão e perogue pro almoço vou hoje" ou " Num tá a Ticinha no quarto" se a coleguinha telefonava atrás da Tice. Cozinhava feijão, arroz e muitas variações do pierogi, todos os dias, invariavelmente. Pierogui assado, cozido, frito, de ricota, de couve, de carne moída.
Achávamos que ela era um tipo de extraterrestre. Morria de medo de eletro domésticos e de carros. Andava quilômetros para não ter que atravessar uma avenida.
Certo dia ela nos chocou. Estavamos todos assistindo ao noticiário na cozinha quando o William Bonner deu alguma notícia ruim, de um acidente grave ou algum crime, não me recordo. A Lúcia ficou tão impressionada com tal calamidade que não aguentou, levantou correndo atravessou a cozinha, desligou a nossa televisão e foi se esconder no seu quarto com o gato, seu melhor amigo e confidente. Nós rimos e tentamos confortá-la. Mas não pude deixar de pensar que talvez ela realmente fosse de outro planeta.
Isso foi a mais de uma década... (não tentem fazer as contas, por favor!)
Pois eis que na semana passada eu dirigia para o trabalho e ouvia o noticiário no rádio, quando o jornalista anuncia uma notícia horrenda, violenta demais para aquele horário do dia. E num reflexo eu desliguei o rádio e enxotei as cenas que se formavam na minha mente. Senti até náuseas. No mesmo momento me recordei do episódio da nossa Lúcia.
Ela era mesmo uma estrangeira na nossa sociedade, e vivia mesmo em outro mundo. Mas não era ela a anormal. Nós é que nos tornamos insensíveis de tanto escutar barbaridades. Eu porém, de alguma forma recuperei um pouco da minha sensibilidade pelo jeito, e daqui para frente vou tentar mantê-la intacta. Não vai ser fácil.
Como será que está a Lúcia hoje...tomara que já consiga atravessar a avenida e ligar o liquidificador, e que jamais perca a sua sensibilidade e pureza.

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